Ilustração: Marta Pucci

Tempo de leitura: 6 min

Hora de engravidar: existe um relógio biológico da fertilidade?

Dois eventos curiosos passaram a acontecer comigo quando fui avançando na casa dos 30 anos. Sou uma mulher heterossexual e, agora aos 35 anos, posso dizer que já perdi a conta de quantas vezes tive que ouvir em situações sociais diversas, sobretudo naquelas em que os participantes têm filhos, que o meu relógio biológico já deveria estar apitando. "O relógio biológico não falha, hein?", dizem eles quando me prontifico a pegar um bebê no colo para que seus pais possam comer sossegados. Este é o que considero como evento curioso nº 1.

Vale fazer uma adenda sobre este evento: são raras as vezes que vejo alguém fazer esse tipo de comentário com meu parceiro. Em algumas circunstâncias eu revido, perguntando quando é que vem o segundo ou terceiro filho, ou então tento explicar placidamente sobre o peso das construções sociais, mas na maioria das vezes prefiro dar um sorriso amarelo e irônico.

O evento curioso nº 2 tem acontecido com mais frequência do que eu gostaria, ainda mais quando penso racional e intelectualmente sobre o efeito que o evento nº 1 tem na vida de muitas das mulheres da minha idade. Eu sonho com bebês crescendo dentro de mim. De vez em quando me pego distraída imaginando um bebê bem alojado no meu útero, nadando e curtindo a "ante-sala" da vida em sua pequena cápsula de fluidos e mistérios humanos. Neste momento não quero ter filhos, talvez nunca queira, mas aparentemente o meu inconsciente, na forma de aparições oníricas e devaneios, me diz que eu quero sim, e muito.

E essa combinação paradoxal de eventos me leva a perguntar: o relógio biológico da gravidez existe mesmo ou é uma construção social que define que a maternidade é um dos papéis mais significativos na existência de uma mulher?

O que diz a ciência

O que se pode dizer sobre os relógios biológicos é que eles existem – quem trata deles é a cronobiologia, a ciência que estuda os fenômenos biológicos que ocorrem com uma periodicidade determinada. Temos um relógio biológico que dita o sono, a entrada na puberdade, o processo reprodutivo do corpo feminino e a menopausa, dentre outros (1).

O que não se pode afirmar é que esse relógio biológico dita o desejo das mulheres em serem mães. Segundo o Dr. Jorge Dores, endocrinologista do Centro Hospitalar do Porto, em Portugal, esse relógio "não existe, o que existe é uma pressão puramente social e contextualizada aos momentos que vivemos". Não existem mudanças hormonais que possam estimular o aumento de um possível desejo pela maternidade (2).

Para elucidar o caminho que a fertilidade do corpo biologicamente feminino percorre, vamos relembrar as aulas de ciências: primeiro temos a menarca, nossa grande estreia na vida reprodutiva. É a partir da primeira menstruação que nosso corpo está apto a se reproduzir. Mensalmente, vamos “eliminando nossos óvulos”, que, assim como nós, também vão envelhecendo. Nosso envelhecimento biológico, inclusive, é um processo que nos acompanha desde o momento que nascemos.

E o ciclo mensal pode acabar sendo um lembrete do tempo que passa, agindo como uma espécie de relógio biológico, queiramos ou não. É a biologia nos relembrando do princípio da realidade. No artigo "O mito da Maternidade Glorificada", a psicanalista Estela Welldon postula sobre como a ambivalência da possibilidade de se converter em mãe pode gerar uma grande carga de ansiedade à medida que passam os anos:

“Essa situação pode provocar efeitos colaterais, como o “mini-luto” que acompanha o aparecimento de cada período menstrual, quando a mulher se sente privada da experiência de uma gravidez. Esse processo acontece mesmo nos casos em que a mulher tenha decidido não ficar grávida nesse preciso momento. Em outros casos, para algumas mulheres, a gravidez passa a ser a única prova irrefutável de que pertencem à identidade feminina” (3).

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Culturalmente, a ideia de que uma mulher só é completa quando é mãe ainda é bastante arraigada.

No entanto, numa perspectiva histórica, nem sempre a noção de instinto materno esteve difundida. Se recuarmos no tempo podemos ver, por exemplo, que no século XVI na França as mulheres tinham o hábito de confiar seus recém-nascidos a amas que amamentavam e cuidavam das crianças em seus primeiros anos de vida. Se recapitularmos ainda mais, podemos ver um outro ponto importante que corrobora com uma noção de flexibilidade do "apego" materno: na Idade Média, filhos ilegítimos eram ocorrências comuns. A noção de estrutura familiar era bastante diferente da que tivemos nos últimos dois séculos. É só com a Reforma protestante e a contrarreforma católica que a castidade passa a ser uma exigência, consequentemente levando mulheres a recorrerem a práticas como o aborto, o abandono e o infanticídio (4).

É a partir do século XIX que o papel da mulher como mãe – aquela que nutre, protege e cria – passa a ser amplificado. É também a partir desse período de grandes mudanças culturais e econômicas no mundo que a mulher passa a ser relegada ao domínio interior, doméstico, e o homem ganha o domínio exterior. O papel de mãe fica aí intrinsecamente atrelado à identidade feminina (4).

Apesar da entrada das mulheres no mercado de trabalho a partir do século XX, podemos perceber que esse conflito entre “biologia” e “cultura” ainda continua a reger as vidas de muitas mulheres. Trazendo para uma perspectiva mais particular, basta pensar nos incontáveis jantares, almoços, piqueniques e convescotes em que eu me sinto compelida a me justificar sobre ainda não ter dado priminhos, netinhos e namoradinhas(os) a ninguém. Por que não me perguntam sobre minhas ambições profissionais e intelectuais? Por que existem tão poucos espaços em que podemos conversar sobre nossas angústias entre conciliar maternidade e carreira?

Não é simples, mas quando falamos abertamente sobre nossos próprios sentimentos contraditórios damos espaço para que outras pessoas se reconheçam naquele mesmo contexto, além de criar possibilidades de diálogo sobre um assunto ainda tão envolto em tabu. Quanto aos amigos, conhecidos e parentes que se sentem no direito de nos perguntar casualmente sobre uma decisão tão íntima e pessoal quanto a procriação, talvez o problema esteja na forma como a sociedade está estruturada e não em nossa idade ou nossas escolhas de vida.

No meu corpo quem manda sou eu

Independentemente do relógio biológico ser real ou virtual, é importante pensarmos se essa é uma motivação que sustente a escolha pela parentalidade. Pode parecer óbvio, mas engravidar não é uma questão que caminha sozinha, afinal, depois de nove meses é possível que um bebê venha aí. Acreditar que o relógio biológico possa ter tanto poder sobre nossos corpos trava um grande conflito: somos ou não responsáveis pela nossa própria vida reprodutiva? Eu acredito que sim, que somos, que temos o direito de apertar soneca nesse relógio, se é isso que nos parece certo naquele momento. Acho que devemos tomar nossas decisões, seja de contracepção, seja de concepção, de maneira informada e frontal, e lidando com suas devidas consequências. E os outros que cuidem de seus próprios relógios.

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