Ilustração de duas pessoas conversando sobre menstruação

Ilustração: Emma Günther

Tempo de leitura: 13 min

Como a menstruação virou tabu?

Um olhar para as raízes históricas e teorias por trás do estigma menstrual

*Tradução: Mariana Rezende

Por que não chamamos a menstruação pelo nome? Eufemismos têm um propósito. Eles nos oferecem palavras para falar de coisas que são consideradas culturalmente como tabus. O impacto dos tabus menstruais mais comuns são claros: eles podem levar a desafios consideráveis na gestão da menstruação, situações adversas relacionadas à saúde reprodutiva, ao ostracismo social, a doenças e até mesmo à morte.

O estigma da menstruação é um tipo de misoginia. Tabus negativos nos condicionam a entender a função menstrual como algo que deve ser escondido, algo vergonhoso. E quando não nomeamos alguma coisa, reforçamos a ideia de que aquilo é algo que não deve ser nomeado.

Mas a menstruação sempre precisou de codinomes? De onde vieram essas palavras? A menstruação sempre foi considerada uma experiência negativa?

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Os eufemismos e tabus menstruais são antigos, mas nem todas as sociedades veem a menstruação de forma negativa.

Menções sobre a menstruação podem ser encontradas na primeira enciclopédia latina (73 a.C.):

O contato com [sangue menstrual] torna o vinho novo azedo, colheitas tocadas tornam-se estéreis, enxertos morrem, sementes nos jardins secam, o fruto das árvores cai, a borda de aço e o brilho de marfim são embotados, colmeias de abelhas morrem, até mesmo o bronze e o ferro são absorvidos pela ferrugem e um cheiro horrível enche o ar; prová-lo enlouquece os cachorros e infecta suas mordidas com um veneno incurável (1).

Os tabus provavelmente surgiram antes da agricultura e até mesmo da linguagem (2, 3).

A menstruação é muito anterior à linguagem. A vida dos primeiros seres humanos estava concentrada na sobrevivência, reprodução e funções biológicas: nascimento, morte, sexo e caça. Estes elementos foram cruciais na formação da linguagem e não o contrário. É nesse ponto em que os antropólogos fazem suas pesquisas sobre o tabu menstrual: na intersecção entre evolução, comportamento e biologia.

Embora os tabus da menstruação sejam praticamente universais, existem exceções e os próprios tabus têm variações. Determinadas sociedades fazem associações positivas para a menstruação e eufemismos. Algumas sociedades modernas, de caçadores-coletores, por exemplo, compreendem que a menstruação é poderosa, curandeira, protetora e sagrada (4, 5). Esses grupos também são mais propensos a ter um grau maior de igualdade de gênero (2, 5).

Alguns costumes menstruais podem funcionar como ferramentas para aumentar a autonomia feminina, garantindo controle social e dispensa laboral, dentre outros benefícios (4, 6, 7). A tribo Mbendjele da África Central, por exemplo, ainda usa ditos populares como "meu maior marido é a lua" (8). A maior cabana de palha da tribo Mbuti no Zaire é a cabana menstrual onde as mulheres vão quando menstruam pela primeira vez acompanhadas por outras meninas e parentes mulheres. Ali, menstruar é considerado poderoso e abençoado pela lua (9).

Até textos médicos do antigo Egito, incluindo o papiro ginecológico de Kahun, de 1800 a.C., e o papiro Ebers, de 1500 a.C., usam a palavra hsmn para a menstruação, que, segundo alegações, pode significar "purificação"(7). A menstruação nesses textos é vista de forma positiva. Curas para amenorreia são oferecidas e o sangue menstrual é usado como ingrediente para pomadas, como a usada para seios flácidos (10, 11).

A criação de tabus menstruais aconteceu de forma independente e repetida por diversos povos e geografias. Mas estudiosos discordam sobre o motivo.

A origem (e função) do tabu menstrual negativo ainda é debatida. Freud disse que era por medo de sangue (12). Allan Court argumentou que o tabu começou, em parte, porque os humanos primitivos acreditavam que o sangue menstrual era sujo (ou, como ele mesmo disse em 1963, tinha "um efeito depressivo em materiais orgânicos") (13). A antropóloga Shirley Lindenbaum teorizou em 1972 que o tabu era uma forma natural de controle populacional, limitando o contato sexual por causa do estigma da "sujeira" (14). Em 2000, o historiador Robert S. McElvaine cunhou o termo síndrome não-menstrual ou SNM para descrever a inveja reprodutiva que levava os homens a estigmatizarem a menstruação e dominarem socialmente as mulheres como forma de "compensação psicológica para aquilo que o homem não consegue fazer biologicamente" (15).

Todas essas teorias estão ligadas ao tempo e o local em que foram desenvolvidas, e muitas foram formadas a partir da presunção da negatividade menstrual. Clellan Ford postulou que o tabu menstrual foi desenvolvido porque as primeiras sociedades sabiam dos seus "efeitos tóxicos e causadores de doenças" (16). Obviamente, nos dias de hoje sabemos que o sangue menstrual não é tóxico. Mas essa visão persistiu na ciência durante o século XX. Em 1920, o Dr. Béla Schick cunhou o termo menotoxina depois de concluir que as flores manuseadas por uma enfermeira menstruada murchavam mais rápido (5). Em 1952, os pesquisadores da Universidade de Harvard, Olive e George Smith (pioneiros nos campos de ginecologia e tratamentos com estrogênio) injetaram sangue menstrual com bactérias latentes em animais, matando-os (16). De acordo com *The Curse: A cultural history of menstruation* (*A Praga: uma história cultural da menstruação*), os Smiths continuaram a atribuir as mortes a menotoxina por muitos anos, mesmo depois que outras pesquisas descobriram que os animais morreram pela contaminação bacteriana do sangue, e não pelo sangue em si (17). A toxicidade do sangue menstrual foi refutada no final de 1950 (18).

Em 1974, um estudo comparativo entre 44 sociedades descobriu que a maioria das culturas pesquisadas via a menstruação, em parte, pelo que ela é: um sinal de uma fase reprodutiva. O estudo também descobriu que a forma do tabu em determinadas sociedades pode ter ligações próximas com a quantidade de participação dos homens nas atividades de procriação nesta sociedade, como educação das crianças e partos, ou seja, uma maior participação foi associada com menos tabus (embora essa relação não fale sobre causalidade) (5).

Uma teoria sustenta que os tabus menstruais estão no centro da origem do patriarcado.

O professor Chris Knight, um antropólogo social da Universidade de Londres, pesquisou as profundas raízes históricas do tabu menstrual. Em 1991, ele publicou Blood Relations: Menstruation and the Origins of Culture ("Relações de Sangue: Menstruação e as Origens da Cultura"), e depois fundou a EVOLANG, uma série de conferências internacionais sobre a evolução da linguagem. As teorias de Knight são controversas, mas são também instigantes e abordam a complexidade e a importância do discernimento das raízes históricas do estigma da menstruação.

Knight acredita que os tabus originais da menstruação nasceram de comportamentos e superioridade femininos nos humanos primitivos, ou seja, foram as fêmeas que tiveram bons motivos para estabelecer a menstruação como o período em que seus corpos não poderiam ser tocados, criando seu próprio tabu. Foi só depois que esse tabu se transformou em algo que comprometeu a autonomia feminina ao invés de fortalecê-la.

Para a teoria de Knight fazer sentido, os humanos primitivos teriam que menstruar em sincronia com a lua, algo para o qual não temos evidências nas sociedades modernas. Porém, como Knight ressalta, isso não significa que a duração do nosso ciclo não tem importância evolutiva. A espécie humana evoluiu sob condições que favoreciam um ciclo menstrual de 29,5 dias, a mesma duração do ciclo lunar. Nossos parentes próximos, os chimpanzés e bonobos, têm ciclos menstruais de cerca de 36 e 40 dias respectivamente. Os cientistas não estão de acordo sobre o motivo do ciclo humano ser tão próximo ao ciclo da lua, ou por que o eufemismo original para o sangramento cíclico é relacionado com a lua em diversas culturas. Mas Knight diz que não podemos descartar isso como coincidência antes de explorar se houve alguma base adaptativa para tal - como e por que isso pode ter beneficiado as mulheres no nosso passado evolutivo.

A teoria é melhor explicada em duas partes: as possíveis origens das práticas menstruais benéficas para as mulheres e como elas podem ter mudado tão drasticamente.

A teoria de Knight sobre o tabu menstrual começa com a maneira que nossos antepassados caçavam.

Na medida em que os Homo habilis evoluíam na África há cerca de dois milhões de anos, eles coexistiam com grandes felinos, como leões, tigres-de-dentes-de-sabre e outros grandes predadores com uma visão noturna imensamente superior à nossa. A caça em tempos de pouca iluminação lunar teriam sido mais perigosa do que a caça com a lua cheia iluminando os arredores.

As práticas ancestrais de caça proporcionavam pouca carne para as fêmeas e seus filhotes. Quando os chimpanzés caçam, os machos se agrupam ao redor da caça e por ela lutam enquanto a comem imediatamente ali no local. Isso não deixava muita carne de sobra para quem estivesse no acampamento, que acabavam tendo que encontrar proteínas em outras formas para sua alimentação.

Em contraste, as sociedades atuais de caçadores-coletores na África têm regras onde os caçadores retornam ao acampamento com todo o abate para ser posteriormente recolhido e compartilhado pelas mulheres equitativamente.

No modelo de Knight, as fêmeas primárias tinham um papel importante em moldar esse novo comportamento de caça promovendo segurança e garantindo que a comida da caça seja compartilhada. As fêmeas começaram a se reunir em isolamento dos machos por um período próximo a lua nova (escuridão), algo que ainda acontece em sociedades de caçadores-coletores nos dias atuais. Durante esse período, o sexo seria suspenso e a atenção do macho estaria voltada para a próxima caça na lua cheia. Os machos acreditavam que as fêmeas menstruavam juntas durante esse período. Depois da caça, se os machos retornassem com comida, seus comportamentos de preparação, participação e compartilhamento da caça seriam recompensados. O período de isolamento sexual terminaria e daria início a um momento de celebração e atividade sexual.

Portanto, é a sinergia cíclica do luar, da luz do fogo, da nutrição e do comportamento, em vez da gravidade, que Knight sugere ser possível para uma possível sincronia menstrual em nossos ancestrais.

Ao se reunirem e sinalizarem “não”, as fêmeas podem ter estabelecido o sangue como poderoso, criando um forte símbolo cultural e o primeiro “tabu” menstrual -- talvez diferente da maneira como pensamos nos tabus atuais. A menstruação se associaria ao poder, ao sucesso da caça e ao sangue dos animais de caça. Esse “tabu” no sangue pode então ter se aplicado também ao sangue dos animais mortos, levando os machos a não comer seu próprio abate até que o sangue fosse trazido para o acampamento e removido através do cozimento. O povo Ju/'hoansi no sul do continente africano, por exemplo, conta histórias de homens que são mortos por elefantes depois de ignorarem tabus menstruais, e como caçar durante o período menstrual da parceira pode acarretar em ataque ou perda da caça.

Como uma prática que beneficiava mulheres mudou

Se o tabu menstrual original era uma forma de fortalecimento do poder feminino, por que isso mudou? Knight diz que essa mudança aconteceu quando a caça de grandes animais se tornou mais escassa. Na medida em que a população crescia e os animais grandes se tornavam cada vez mais difíceis de serem caçados, uma caçada mensal não era suficiente. As populações começaram a depender de pequenos animais, tubérculos e outros alimentos reunidos de forma muito mais contínua, tornando menos viável o ritmo tradicional de trabalho e todos os comportamentos e rituais associados a esse ritmo.

A dessincronização da caça com a lua teria custado ao ciclo menstrual sua própria sincronia. A essa altura, explica Knight, o tempo de quase tudo teria sido governado por essas práticas. Quando se tornaram irrelevantes, quaisquer regras associadas de isolamento sexual ou solidariedade foram deixadas pelo caminho. Quando essas práticas deixaram de funcionar, os ciclos menstruais começaram a dessincronizar novamente, e a solidariedade feminina comunitária foi perdida.

Nesse momento, aconteceu algo muito estranho, diz Knight. "Em muitos lugares, para evitar que todo o sistema entre em colapso, os homens começam a ritualizar sua própria versão da menstruação, cortando seus pênis (ou, em alguns lugares, ouvidos, narizes ou braços) e sangrando juntos, derramando quantidades enormes de sangue."

As cabanas menstruais, espaços comuns onde as mulheres se reuniam para menstruar juntas, passaram a ser espaços para o novo, e mais sincronizado ao ritual de sangramento masculino. "Se tornaram cabanas masculinas das quais as mulheres foram excluídas e renomeadas como Casas dos Homens ou Templos."

Knight acredita que é isso que está no cerne de todas as religiões patriarcais do mundo. "Onde quer que você encontre esses templos e igrejas, no judaísmo, no cristianismo, eles são cabanas de homens em geral, controlados e dominados pelos homens." Mesmo depois do início da agricultura, esses rituais de sangramento masculino continuaram.

Tudo isso pode ter definido o cenário para a maneira como a menstruação é vista e tratada nas culturas extremamente patriarcais dos romanos, gregos e religiões posteriores, que culminaram no nosso ocidente moderno.

(A título de contexto temporal, esta história começou há cerca de dois milhões de anos no tempo do *homo habilis*, um trecho de cerca de 600.000 anos de história entre "humanos semelhantes a macacos" e o homo erectus. O uso do fogo começou há cerca de 1,5 milhão de anos e a culinária começou há menos de um milhão de anos. A escassez de grandes animais de caça, e os resultados disso, estão localizados no período muito mais recente desde a última Era do Gelo).

"Na base de todas as religiões do mundo, encontramos uma ideia fundamental. Algumas coisas são sagradas. E se o corpo não é sagrado, nada é", diz Knight. "O sangue era uma marca da sacralidade do corpo. Assim, o paradoxo é que o mesmo que beneficiou as mulheres ao longo da evolução é agora usado e vivenciado como o mais incapacitante".

Podemos nunca saber exatamente como os tabus menstruais foram estabelecidos.

É claro que existem profundas controvérsias em torno dessas histórias, deixando muitos elementos abertos para livre interpretação. Tanto a sincronia menstrual quanto a assincronia podem ter sua vantagem na evolução adaptativa. Algumas pesquisas sugerem que a sincronia diminui a competição entre mulheres e favorece a diversidade genética, por exemplo (19). Mas a qualidade da evidência sobre a sincronicidade do ciclo em populações humanas e não humanas é questionada e calorosamente debatida, e foi escrita pela colaboradora do Clue em Oxford, Alexandra Alvergne, bem como por Knight, entre outros.

Para uma explicação detalhada da teoria de Knight, você pode ler mais aqui, ou em seu livro (ambos em inglês). A teoria de Knight tem sido referenciada por seus pares como o "mais importante já escrito sobre a evolução da organização social humana". Sua visão é, indiscutivelmente, a única estrutura teórica para essa história profunda de tabu menstrual até o momento, o que pode ser um reflexo dos próprios tabus dentro da academia.

Está claro que a maneira como falamos sobre a menstruação muda muito lentamente por causa da profundidade do enraizamento dos tabus menstruais em nossas culturas, crenças e histórias. As sociedades que nos dão a compreensão de nossos corpos foram formadas em torno desses tabus. A mudança nos tabus precisa ser uma mudança das estruturas.

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Artigo originalmente publicado em 8 de setembro de 2017.

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